A odisseia de Carajás
O trem de Carajás é o maior do mundo. Todos os dias ele faz 24 viagens de ida e volta entre a mina de Carajás, no coração do Pará, e o porto da Ponta da Madeira, no litoral do Maranhão. Percorre quase 900 quilômetros em cada viagem, com duração de 18 horas. Sua passagem por qualquer ponto demora quatro minutos. Ele tem quatro quilômetros de comprimento.
Cada trem, com 300 vagões de 80 toneladas, arrasta 24 mil toneladas. Ao final de um dia transporta 576 mil toneladas do melhor minério de ferro do mundo, com pureza de mais de 65% de hematita, sem igual na crosta terrestre. É o equivalente à carga de 17 mil caminhões pesados
Essa carga diária vale quase 60 milhões de dólares quando chega ao seu destino. Dos 100 milhões de toneladas que Carajás produziu (exportando quase tudo) no ano passado, 80% tomaram a direção da Ásia: 60% para a China e 20% para o Japão.
O minério de ferro se tornou o principal item da pauta de exportação recorde do Brasil. Só Carajás permitiu o ingresso de quase US$ 9 bilhões líquidos no caixa do Banco Central no ano passado (e há ainda outros minérios cada vez mais importantes em Carajás: níquel, cobre e manganês).
A ex-estatal Companhia Vale do Rio Doce, que explora a mina, se tornou a maior empresa privada do Brasil, do continente e a segunda maior mineradora do mundo. É responsável por 10% da balança comercial brasileira. A maior parcela da sua receita vai ser extraída cada vez mais de Carajás. Ainda nesta década a produção de minério de ferro estará mais do que duplicada.
O incremento do ritmo de produção de Carajás é um dos processos mais impressionantes da história contemporânea do Brasil. A grande província levou 15 anos para produzir os primeiros 500 milhões de toneladas de minério de ferro. Outros 500 milhões foram alcançados nos sete anos seguintes — em menos da metade do período anterior, portanto.
Esse mesmo volume foi registrado nos últimos cinco anos. E com a entrada em operação da nova mina, ao sul da atual, a produção de 500 milhões de toneladas será batida a cada três anos. Significa dizer que antes da metade desta década a produção acumulada de Carajás chegará a dois bilhões de toneladas.
A jazida é de 18 bilhões de toneladas, do minério top ao menos rico. No ritmo máximo inicialmente previsto, de 25 milhões de toneladas, levaria quase 800 anos para ser esgotada. Na intensidade que terá a partir de 2017, quando a duplicação estará feita, a melhor concentração do minério mais usado pelo homem só durará mais 80 anos. Não haverá mais Carajás quando o século XXII estiver começando*. Grande parte desse ferro terá sido transformada em construções e produtos na China, que tem um terço da produção siderúrgica mundial. Ou, quem sabe, ainda estará guardada em seu território para uso futuro.
Essa empreitada de escala mundial adquirirá uma dimensão sem igual na história do aproveitamento de um recurso natural no Brasil. Para haver a duplicação, já em fase de execução, aos trens em operação, equivalentes a 17 mil caminhões diários, terão que ser acrescidos o equivalente a 37 mil caminhões diários. No total, trens que substituem 54 mil caminhões trafegando todos os dias, para dar uma ideia mais visualizável pelo cidadão brasileiro em sua civilização ainda rodoviária.
Para que Carajás atinja a escala de 230 milhões de toneladas por ano, a Vale precisará investir 40 bilhões de reais, sendo R$ 16,5 bilhões na mina e R$ 23,5 bilhões na logística, da qual o principal item é a duplicação da ferrovia, pela qual circula o maior trem de carga do mundo.
No dia 30 de julho as obras de duplicação da ferrovia foram interrompidas por decisão liminar de um juiz federal do Maranhão. No dia 13 de setembro o presidente do Tribunal Regional Federal da 1ª Região suspendeu os efeitos da decisão e as obras prosseguiram.
Em 30 dias de paralisação a Vale disse ter perdido 40 milhões de reais e foi sobrestado um financiamento de R$ 3,9 bilhões do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). Esse seria o prejuízo já criado, mas muitos outros surgiriam se a medida fosse mantida, obrigando a demissões, corte de investimentos e muitas outras repercussões, inclusive internacionais.
O movimento pendular de suspensão e reativação de grandes obras pela justiça já é um acidente de percurso desses projetos, por seus impactos locais. No caso, estão em questão os interesses de remanescentes de índios, os Awa Guajá, e de 86 comunidades quilombolas estabelecidos às margens da ferrovia.
O juiz federal Ricardo Macieira ficou convencido pelos argumentos de entidades que representam esses grupos de que é preciso recomeçar o processo de licenciamento desde o início para que índios e quilombolas sejam ouvidos e digam se concordam com a obra. Enquanto isso não ocorrer, a duplicação da ferrovia não poderia prosseguir.
A Vale conseguiu demonstrar ao desembargador federal Mário César Ribeiro que a duplicação é apenas a interligação de pátios de estacionamento que já existem, nos quais os trens aguardam para retornar ao trilho principal, sem expandir a faixa de domínio da ferrovia, em operação desde 1985; que o processo de licenciamento, iniciado em 2004, percorreu todos os caminhos administrativos e está enquadrado na legislação;e que os próprios quilombolas fizeram um acordo em juízo que lhes garante os direitos de acompanhar as obras e se protegerem.
O debate e as medidas pró e contra a obra poderão prosseguir, mas nem tocarão na questão principal: o Brasil aceita a decisão da Vale de acelerar ao máximo a extração do minério de Carajás e esgotar a mais preciosa jazida de ferro do mundo em um século?
Fonte: Lúcio Flávio Pinto | Cartas da Amazônia